KARLA GIACOMIN
Do afeto que me acolheu na adversidade, nasce meu sonho de garantir cuidado e dignidade para todos ao longo da vida.
Se pensarmos nos sonhos que temos enquanto dormimos, por vezes confusos, surreais, que misturam tempos, lugares e pessoas, por vezes não conseguimos compreender. É preciso pedir ajuda a um psicanalista para desvendar as tramas do nosso inconsciente.
Quando pensamos em sonhos que temos acordados, aparentemente coerentes e possíveis, quase sempre envolvem diferentes etapas e atores, desde a concepção até a execução, mas tampouco é fácil compreender. É preciso encontrar outras pessoas que comungam dos mesmos anseios para dar força e sentido ao que sonhamos.
Um sonho me acompanha desde menina. Descobri que meu pai, filho de imigrantes, cresceu sem nunca ter ido a uma sala de aula porque lhe faltou o direito à educação. Meus avós maternos, um pedreiro e uma lavadeira de roupas, viveram até o fim em uma casa em uma favela da minha cidade, onde criaram os 16 filhos e ainda acolheram outras pessoas que vinham para a cidade trabalhar. Banana caturra (nanica) e fubá eram os alimentos do dia a dia. Vários vizinhos não estudaram, alguns morreram jovens, vítimas da violência. Minha avó bateu em várias portas pedindo bolsas de estudo e vagas de emprego, para os filhos. Minha mãe somente pôde estudar depois e casada com os filhos e ainda assim chegou á pós-graduação. Exemplo de resiliência e fé.
Até minha entrada para escola aos 5 anos, vivi em uma casa sem luz, sem água encanada, sem banheiro, e fui cuidada por pessoas maravilhosamente generosas, apesar dos poucos recursos materiais que possuíam. Quando não tínhamos carne para comer, chamávamos abóbora de leitoa para nos iludirmos. Por três vezes a casa caiu, soterrada por um barranco quando chovia. Esta família migrante que deixou a roça em busca de melhores condições de vida na cidade me cuidou com todo amor e carinho.
Meus pais tinham que trabalhar, meus irmãos já estudavam e não havia quem pudesse tomar conta de mim. Por isso eu ia para a casa da minha tia-avó. Era ela quem costurava à mão roupinhas de boneca, construía fornalhas de e panelinhas de barro para eu brincar, me ensinou a rezar o terço por medo da chuva. Um dia perguntei para ela por que ela sempre me devolvia nos finais de semana para meus pais? Ela me respondeu que era porque ela não tinha conforto para me dar. Ao chegar em casa, perguntei à minha mãe: ‘o que é conforto’?
Nada me faltava.
Somente mais tarde vim a descobrir que minha história é marcada pela falta de acesso a direitos. Falta de acesso ao direito à educação, à moradia, ao saneamento básico, à energia elétrica, ao transporte público, a condições dignas de trabalho e renda. Ainda assim tive cuidado. Este passou a ser o meu propósito de vida. Lutar pelo direito ao cuidado para todos. Especialmente para aqueles que mais me deram e menos tiveram: os mais velhos.
Tive a chance de estudar, fazer geriatria, estudei fora do Brasil, conheci outras realidades. Voltei ao Brasil. Fiz mestrado, doutorado. Estive na presidência do Conselho Municipal de Idosos e no Conselho Nacional de Direitos do Idoso. Trabalho no serviço público de saúde e descobri que temos muito a fazer para melhorar o cuidado nos domicílios familiares e nas residências coletivas de idosos. Tenho trabalhado muito por isso.
Este é o meu sonho: garantir cuidado ao longo de toda a vida, inclusive na velhice, em todos os cenários: domicílio, comunidade, hospital, residências coletivas.
Mas não conseguirei sozinha. Vem comigo?