No turbilhão de nossa sociedade acelerada, tendemos a esquecer que o ato de cuidar ultrapassa a simples manutenção biológica. Ao falar sobre Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), devemos reconhecer que não se trata de “guardar” corpos, mas de acolher pessoas com histórias, necessidades e dignidade. Este artigo busca iluminar as áreas sombreadas desse cuidado, lembrando que muitos profissionais atuam com ética e compaixão para combater o oportunismo que se aproveita da fragilidade humana.
Idosos: mais que um corpo
A maioria das pessoas que chegam a morar em uma ILPI não o faz por escolha espontânea, mas por absoluta necessidade de cuidados físicos e emocionais. Pouquíssimos sonham em viver em um espaço coletivo; muitos veem aquele momento como uma rendição:
“Se estou aqui, para quê vivo? Já não sirvo para nada.”
Quando a percepção de utilidade e pertencimento se esvai, acende-se o alerta para a urgente necessidade de enxergar além dos tratamentos médicos e das rotinas de higiene: precisamos contemplar a pessoa inteira, dando voz às suas memórias, acolhendo suas angústias e celebrando seus sonhos.
Chamar de “residência” um espaço que apenas abriga é esquecer a essência do termo. Residir é mais do que ocupar um lugar: é pertencer, manter vínculos sociofamiliares, participar de escolhas cotidianas. Quando enxergamos o idoso apenas como um corpo, reduzimo-lo a uma mercadoria — um ser embrulhado na institucionalização, exposto ao risco de práticas predatórias.
Por outro lado, dar nome ao problema — reconhecer que há algumas instituições e lideranças que, ao priorizarem exclusivamente a rentabilidade, acabam negligenciando a dimensão holística do cuidar — é o primeiro passo para reverter esse quadro.
A preocupação filosófica aqui é muito clara: nomear é iluminar a lacuna. Só quando reconhecemos a sombra podemos escolher enfrentá-la com ação ética e compassiva.
As sombras do isolamento e da perda de sentido
Muitos residentes, ao se deparar com as limitações impostas pela idade ou por condições como a demência, caem numa armadilha psicológica: sentem-se irrelevantes. Essa sensação reforça a ideia equivocada de que o idoso é “apenas um corpo” a ser cuidado. Num ambiente em que a rotina dita cada gesto – do banho ao horário das refeições –, a liberdade de escolha se esvai lentamente, e a autoestima tende a definhar.
Quando a instituição não se mobiliza para garantir atividades que alimentem o espírito (oficinas de arte, rodas de conversa, pequenas celebrações internas), o idoso passa a existir como um número, sem significado próprio. O respeito à individualidade e o estímulo à participação ativa em decisões cotidianas são antídotos poderosos contra o isolamento emocional.
Liberdade limitada: barreiras da ILPI
Mesmo em ILPI que se esforçam para promover alguma autonomia, tudo frequentemente se restringe ao portão:
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Horários rígidos de entrada e saída.
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Visitas controladas, em horários limitados.
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Programações pré-definidas, sem espaço para improviso ou interesses pessoais.
Para muitos, essa limitação à liberdade cotidiana reforça a sensação de cárcere invisível. O idoso que desejaria passear sozinho pela rua é barrado pelo receio da segurança; o que queria simplesmente tomar um café com amigos da vizinhança precisa respeitar regras de circulação. O resultado? Barreiras físicas que se transformam em barreiras emocionais e identitárias.
Demência e rotulagem: a desumanização silenciosa
Pessoas com demência ou comprometimento cognitivo, por vezes, passam a ser tratadas como “etiquetas ambulantes”:
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“Tem Alzheimer, não sabe o que faz.”
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“É difícil, não consegue participar de nada.”
Esse tipo de visão reduz cada indivíduo a um diagnóstico, obscurecendo suas capacidades remanescentes e sua subjetividade. A literatura sobre fatores de risco mostra que a falta de estímulos cognitivos e afetivos acelera o declínio funcional e agrava sintomas de ansiedade e depressão. Para evitar o abuso psicológico e o declínio precoce, faz-se necessário traçar indicadores claros de maus-tratos: negligência na comunicação, isolamento réu-resolvedor (quando a ILPI não oferece suporte individualizado, o isolamento passa a ser visto como solução fácil, culpando o idoso por ser “difícil”), ausência de atividades de convívio. É preciso perceber que cada etiqueta carrega um ser humano sedento por conexão.
Zonas de sombra: autonomia limitada e estigmatização
- Autonomia restringida
Muitos idosos chegam às ILPI sem opção, por razões de saúde ou ausência de rede de suporte. Em rol de necessidades que dependem de terceiros, a autonomia fica restrita aos limites do espaço físico: o portão tranca mais que uma porta; fecha horizontes. Mesmo quando há tentativas de “liberdade”, esta se esgota no limiar da instituição. O cuidado, ao invés de emancipar, retira o idoso de seu papel social. - Rotulagem e demência
É comum que pessoas com sinais de demência sejam percebidas como “etiquetas ambulantes” — “tem Alzheimer, então não participa de nada”. Essa lógica útil apenas para quem busca eficiência em vez de humanidade ignora a riqueza que ainda pulsa na memória afetiva e na singularidade de cada um. Até os momentos de silêncio, quando alguém cala-se para buscar uma lembrança, podem ser transformadores, se o profissional tiver sensibilidade para perceber o valor daquele instante. - Mercantilização do envelhecimento
Algumas instituições nascem com objetivos claros de lucro, sabendo que a demanda de cuidado no Brasil é crescente e a oferta restrita. Esse oportunismo — tratar fragilidade como oportunidade de negócio — gera formas de abuso que passam despercebidas, pois muitas vezes são sutis: cobrança excessiva de diárias, redução de equipe para economizar, reforço da ideia de que o idoso “incomoda” quando reclama. É preciso ter coragem para dar nome a essa caducidade ética e questionar: por que a fragilidade não pode ser também fonte de cuidado digno?
O papel dos profissionais éticos: resistir ao oportunismo
Felizmente, nem todos adotam a lógica mercantilista. Há cuidadores, enfermeiros, gerontólogos, psicólogos, assistentes sociais e gestores, por exemplo que, movidos pela compaixão e pelo entendimento profundo do envelhecimento, pautam seu trabalho na defesa do ser. Esses profissionais:
- Cultivam vínculos afetivos: mantêm conversas diárias que não giram apenas em torno de queixas físicas, mas que valorizam histórias de vida, sonhos e memórias. É esse vínculo que fortalece o sentido de pertencimento.
- Praticam a escuta empática: antes de qualquer intervenção, ouvem o que o idoso quer dizer. Quando alguém expressa “não sirvo para nada”, reconhecem nesse lamento um apelo à atenção, e respondem com presença afetiva, estimulando autoestima.
- Desligam-se do tempo Cronos: não deixam que a rotina mecânica controle cada gesto. Sabem que há momentos em que uma conversa prolongada, uma oficina de arte improvisada ou um simples chá coletivo (tempo Kairos) são fundamentais para restaurar a esperança.
- Defendem a inclusão e o protagonismo: mesmo quando há restrições cognitivas, buscam atividades ajustadas a cada limitação — estimulação cognitiva com jogos de memória, rodas de conversa em pequenos grupos, celebrações que envolvam música e dança. Reiteram que “a pessoa transcende seu diagnóstico”.
- Cuidam da formação contínua: frequentam cursos, palestras e leituras sobre geriatria e gerontologia, conscientes de que o conhecimento é antídoto contra práticas abusivas e negligentes. Essa formação reforça a ética do cuidado, lembrando que cada idoso tem singularidade que deve ser respeitada.
É essa rede de profissionais conscientes que batalha para que o cuidado deixe de ser mercadoria e retorne ao patamar de dedicação humana.
Resgatando o Tempo Kairos na rotina institucional
No seio de muitas ILPI, os relógios ditam horários de banho, alimentação e sono, todos marcados pelo tempo Cronos, frio e matemático. Mas a vida pulsa num compasso diferente — o Tempo Kairos — momento propício para cada gesto nutritivo ao espírito:
- Conversa prolongada:permitir que um idoso compartilhe suas memórias sem cronometrar sua fala, dando ao tempo a chance de estender-se conforme a necessidade afetiva.
- Atividades improvisadas: um grupo que, em determinado dia, manifeste desejo de tocar violão; a equipe busca um instrumento emprestado e deixa o morador conduzir a roda de música. Esse instante, mesmo fugaz, vale mais que a programação semanal definida.
- Ritual de despedida de um objeto querido: quando alguém precisa doar um móvel ou deixar para trás fotos, a equipe reserva um momento para que o idoso expresse sentimentos e memórias ligadas ao objeto, respeitando seu ritmo de elaboração.
Esses gestos, muitas vezes considerados “fora da rotina”, são pilares de um cuidado que não reduz o idoso a um conjunto de necessidades fisiológicas, mas o acolhe como sujeito de sua própria história.
Normativas e ética: além da RDC 502/21
A RDC 502/2021 da Anvisa define padrões mínimos de infraestrutura — quartos com dimensões adequadas, banheiros acessíveis, plano de atenção à saúde, responsável técnico. Contudo, uma ILPI que se limita em somente cumprir normas desconecta-se da essência ética do cuidado. Ter um empreendimento regularizado é fundamental, mas não basta; é preciso também:
- Abraçar a ética como princípio
- Garantir que a dignidade venha antes do lucro.
- Tornar a transparência uma prática diária: informar familiares sobre ocorrências, permitir visitas sem constrangimento e publicar indicadores de qualidade.
- Profundizar o entendimento sobre envelhecimento
- Reconhecer que envelhecer não é sinônimo de inutilidade, mas de adaptação a novos ritmos.
- Investir em treinamentos de gerontologia, psicologia do envelhecimento e comunicação não violenta, para entender as necessidades emocionais e sociais de cada morador.
- Combater o oportunismo
- Identificar e denunciar práticas que veem a fragilidade como oportunidade de lucro: cobrança indevida, superlotação de quartos, subdimensionamento de equipes.
- Apoiar e valorizar profissionais que resistem ao mercado predatório, difundindo suas práticas como modelo de cuidado.
Indicadores de abuso e caminhos para a inclusão
Para não permitir que opacidade e negligência prosperem, é preciso ficar atento a indicadores claros:
- Ausência de estímulo cognitivo e afetivo: se não há atividades voltadas para a memória, leitura, arte ou socialização, há risco de aceleração do declínio.
- Isolamento forçado: barreiras físicas ou emocionais que impedem o morador de conviver com colegas, família e comunidade.
- Negligência na higiene e nutrição: perda de peso inexplicada, higiene precária que aumenta riscos de infecção.
- Restrições ao movimento: cadeados em portas ou cadeiras de rodas travadas sem necessidade clínica.
Combater esses abusos exige a atuação conjunta de Conselhos do Idoso, Vigilância Sanitária e Ministério Público, mas também da sociedade civil e, sobretudo, da rede sociofamiliar. Não podemos esperar que o sistema sozinho combata o oportunismo — é preciso assumir responsabilidade ativa.
Visão 360° e responsabilidade compartilhada
Falar em cuidado integral da pessoa idosa é ir além de protocolos e serviços pontuais. É reconhecer que envelhecer, especialmente em situações de fragilidade, exige uma rede solidária, inteligente e sensível. O conceito de “visão 360°” é amplamente debatido em políticas públicas de países como o Canadá e a Itália, defende que o bem-estar do idoso depende da articulação entre dimensões físicas, emocionais, sociais e ambientais.
Em vez de compartimentalizar a vida do idoso em “caixas” isoladas (assistência, saúde, lazer), é preciso buscar conexões. E essa conexão não significa transformar lares em hospitais ou importar modelos desconectados da realidade brasileira. Significa, sim, fortalecer vínculos entre profissionais, gestores, famílias, comunidades e políticas públicas – respeitando o ambiente residencial, mas sem negligenciar necessidades crescentes.
Experiências internacionais mostram que quando a comunidade participa, os resultados são mais humanos e sustentáveis. Redes de vizinhança, apoio técnico local, acesso facilitado a serviços e financiamento adequado são pilares que podem — e devem — ser adaptados ao nosso contexto. O desafio é coletivo. E, juntos, podemos plantar agora a semente de uma rede de cuidado mais completa, respeitosa e possível.
Reflexão final: ressignificar o futuro
Se cada ILPI fosse como uma comunidade de aprendizado, onde os mais velhos compartilham sabedoria e recebem cuidado sensível, o envelhecimento deixaria de ser visto como fardo. Em vez de um domínio do medo — “quando eu chegar lá, serei apenas um corpo a mais” —, surgiria a possibilidade de reconhecer esse momento como uma nova fase de pertencimento e reciprocidade.
Para muitos de nós, um dia precisaremos de um lar digno; as estatísticas mostram que 1 em cada 5 corre risco de desenvolver demência. Quando esse dia chegar, queremos ser recebidos por pessoas que compreendem que envelhecer é continuar vivendo em plenitude, e não apenas sobreviver. Confiamos no profissional que dirige um ônibus público para levar-nos com segurança; do mesmo modo, precisamos confiar que uma ILPI acolha nossa história sem reduzi-la a uma equação de custos.
Cuidar nas ILPI é, acima de tudo, uma responsabilidade compartilhada: dos gestores, que devem refletir sobre o valor ético de cada ação; dos profissionais, que precisam escutar o idoso como sujeito de sua própria narrativa; das famílias e toda rede sociofamiliar, que devem manter presença ativa; e da sociedade, que deve cobrar transparência e defender o direito à dignidade. É hora de sair do Tempo Cronos — regido por relógios e rotinas — e viver o Tempo Kairos, que reconhece cada momento como oportunidade real de transformação humana.
Somente assim, iluminando as zonas de sombra e apoiando os profissionais que resistem ao oportunismo, transformaremos as ILPI em espaços de vida plena, onde cada pessoa idosa encontre o respeito, a compaixão e a humanidade que merece.
O que você pensa sobre isso? Como podemos aprimorar ainda mais o atendimento nas ILPI? Compartilhem também suas reflexões nos comentários.
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Que texto maravilhoso ! Obrigada
Que texto maravilhoso ! Obrigada